O ATLÂNTICO QUE NOS SEPARA E QUE NOS APROXIMA
    - Envio-vos      este postal de São Paulo, Brasil, onde estou desde há alguns dias, para      leccionar parte de uma disciplina na Pontifícia Universidade Católica de      São Paulo. Para mim, vir a São Paulo deixou de constituir novidade, dado      que, nos últimos anos, tenho estado nesta cidade com alguma regularidade,      mesmo que por motivos diversos.
  
   
    - Recordo-me      que, da primeira vez que vim a São Paulo, transitei por Joanesburgo e      pernoitei no hotel do aeroporto, a espera da ligação no dia seguinte. Trazia      um forte paludismo encubado no meu organismo, pelo que passei longas horas      de sofrimento. Felizmente, os comprimidos de quinino que comprei no      aeroporto reduziram o tempo e a profundidade da minha angústia.
  
   
    - Corria,      pois, o risco de ser medicado e trado no Brasil. Se tal sucedesse,      declarariam certamente que tinha apanhado o dengue, uma doença tropical      que apresenta os sintomas da malária, confundindo-as, e com um enorme      risco.
  
   
    - O dengue e a      malária são como que primos em primeiro grau, mesmo que de estirpes virais      diferentes. Por isso devem ser tratados com terapêuticas distintas.
  
   
    - Apanhamos o dengue      se formos picados pela fêmea contaminada do mosquito Aedes aegypti ou Aedes      albopitus. Por sua vez, o paludismo é transmitido pela picadela da      fêmea do mosquito Anophefes. Por      isso, sempre que venho ao Brasil, cuido primeiro de saber se tenho ou não encubado      o vírus deste último malandro…
  
   
    - Da primeira vez      que viajei para o Brasil, guardo a má memória dessa doença mas,      igualmente, do contacto que tive com algumas nossas compatriotas que      faziam daquela rota o seu negócio. Vinham regularmente a este lado do      Atlântico onde me encontro agora para buscar mercadorias e, depois, as      venderem em Angola.
  
   
    - “Vi      propriamente visto” – creio que assim diria Luís de Camões. Ou então, diria      a minha mãe: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer” o esforço e as      dificuldades por que passavam essas mulheres, esperando longas horas pelo      dia seguinte, para fazerem a ligação. Horas e horas, deitadas no chão, em      condições incómodas.
  
   
    - Passei,      pois, a admirar-lhes ainda mais o espírito empreendedor. Tinham encontrado      um modo expedito para conseguirem obter os rendimentos para se sustentarem      a si e às suas famílias, numa altura em que, entre nós, prevalecia uma      enorme carência dos produtos que elas comercializavam. Outras angolanas, comerciantes      informais, arrojavam-se também por paragens mais complicadas – sem      dominarem o inglês – como a própria África do Sul, Namíbia, e até mesmo o      Dubai.
  
   
    - Felizmente,      a paz e a normalização da vida social permitiram estabelecer os circuitos      comerciais formais, e hoje já podemos adquirir nesses estabelecimentos a      maioria dos bens industriais comuns de que necessitamos. Reduziu-se, pois,      bastante a imagem degradante do passageiro angolano sempre carregado de compras.      Como se fosse um armazém ambulante… É, seguramente, um dos ganhos      económicos e sociais do fim do conflito armado.
  
   
    - A      possibilidade que temos hoje de viajarmos pelo mundo sem carregarmos às      costas o estigma de quem parece estar em busca de um refúgio, de um porto      de abrigo, de um local para trabalhar ou mesmo para estudar, é outra boa      consequência da paz e da normalização da nossa vida.
  
   
    - Hoje, vamos e      voltamos, e festejamos efusivamente – mesmo até com palmas – quando o      avião toca o solo nacional. É o nosso agradecimento por nada de mal nos      ter acontecido no voo. Mas é, sobretudo, a alegria pelo regresso ao ponto      de partida. Deixámos de carregar o estigma de parecermos um povo errante.      Angola é de novo o nosso porto de abrigo, é o nosso torrão de consolo.      Mesmo que, por vezes, seja carente e pouco acolhedora.
  
   
    - Como vos      disse de início, estou em São Paulo, para leccionar algumas aulas. A      cidade de São Paulo é uma cidade muito grande e é, também, uma grande      cidade. Tem a maior área metropolitana do Brasil, da América Latina e até      mesmo do Hemisfério Sul. Possui o 10º maior PIB do mundo. É sede de 2/3      das multinacionais instaladas no Brasil. É uma verdadeira metrópole.
  
   
    - São Paulo é      praticamente contemporânea da cidade de Luanda. Ambas festejam o seu      aniversário no mesmo dia: 25 de Janeiro. São Paulo surgiu 26 anos antes de      Luanda, no ano de 1554, com a edificação, no alto de uma colina escarpada,      de uma povoação de nome São Paulo de Piratininga. Ela nasceu em torno de      um colégio mandado construir por doze padres jesuítas, entre os quais      Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O objectivo era evangelizar os      índios que viviam na região com o mesmo nome: Piratininga.
  
   
    - Luanda      surgiu como povoação colonial em 1576 (uma pequena vila), por determinação      de Paulo Dias de Novais, com o nome de São Paulo de Luanda. Recebeu foral      de cidade cerca de 30 anos mais tarde, em 1605.
  
   
    - Durante a      viagem para São Paulo, fiquei atento ao percurso do avião, correndo sempre      sobre o Atlântico. Pelo monitor instalado no assento de frente, e mais uma      vez, fui olhando para a relação entre Luanda e a cidade do Recife, do      outro lado do Atlântico, na costa brasileira. Se traçarmos uma linha      horizontal a partir de Luanda, depois de percorrer o imenso Oceano, ela      irá tocar precisamente no Recife, a capital do estado do Pernambuco, a      maior aglomeração urbana do Nordeste brasileiro.
  
   
    - O Recife foi      a principal praça dos holandeses no Brasil, um verdadeiro império que se      estendia ao longo da costa até ao norte, no mesmo período em que os      holandeses também dominavam partes da costa angolana, com destaque para      Luanda. Foram expulsos de Luanda em 1648, após sete anos de ocupação, numa      expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, governador do      Rio de Janeiro. A nossa cidade capital passou então a chamar-se São Paulo      da Assunção, em homenagem a Nossa Senhora da Assunção.
  
   
    - Era o      interesse do tráfico de escravos a ditar o comportamento dos governantes      brasileiros. A produção do açúcar no Brasil necessitava de fortes      contingentes de mão-de-obra escrava e muita dela provinha de Angola. Anos      antes, fracassara uma tentativa semelhante sob o comando do governador do      Rio de Janeiro, Francisco de Souto-Maior.
  
   
    - Gosto de      viajar para o Brasil, por muitas razões. Uma delas é a minha curiosidade      por entender melhor este país que é já uma das 10 maiores economias do      mundo.
  
   
    - Gosto imenso      da história do Brasil: rica, multifacetada e, sobretudo, muito ligada à      nossa história. Muitos dos nossos sangues cruzaram-se nesse misterioso percurso      atlântico.
  
   
    - Afinal, é      esse Oceano Atlântico que nos separa. Mas é, igualmente, o Oceano      Atlântico que nos aproxima. Fim do Postal. Vai sem imagens. Penso que as      palavras dizem o suficiente.
  
     
 
 
 
          
      
 
  
  
 
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