- Envio-vos      este postal de São Paulo, Brasil, onde estou desde há alguns dias, para      leccionar parte de uma disciplina na Pontifícia Universidade Católica de      São Paulo. Para mim, vir a São Paulo deixou de constituir novidade, dado      que, nos últimos anos, tenho estado nesta cidade com alguma regularidade,      mesmo que por motivos diversos.
  
   
    - Recordo-me      que, da primeira vez que vim a São Paulo, transitei por Joanesburgo e      pernoitei no hotel do aeroporto, a espera da ligação no dia seguinte. Trazia      um forte paludismo encubado no meu organismo, pelo que passei longas horas      de sofrimento. Felizmente, os comprimidos de quinino que comprei no      aeroporto reduziram o tempo e a profundidade da minha angústia.
  
   
    - Corria,      pois, o risco de ser medicado e trado no Brasil. Se tal sucedesse,      declarariam certamente que tinha apanhado o dengue, uma doença tropical      que apresenta os sintomas da malária, confundindo-as, e com um enorme      risco.
  
   
    - O dengue e a      malária são como que primos em primeiro grau, mesmo que de estirpes virais      diferentes. Por isso devem ser tratados com terapêuticas distintas.
  
   
    - Apanhamos o dengue      se formos picados pela fêmea contaminada do mosquito Aedes aegypti ou Aedes      albopitus. Por sua vez, o paludismo é transmitido pela picadela da      fêmea do mosquito Anophefes. Por      isso, sempre que venho ao Brasil, cuido primeiro de saber se tenho ou não encubado      o vírus deste último malandro…
  
   
    - Da primeira vez      que viajei para o Brasil, guardo a má memória dessa doença mas,      igualmente, do contacto que tive com algumas nossas compatriotas que      faziam daquela rota o seu negócio. Vinham regularmente a este lado do      Atlântico onde me encontro agora para buscar mercadorias e, depois, as      venderem em Angola.
  
   
    - “Vi      propriamente visto” – creio que assim diria Luís de Camões. Ou então, diria      a minha mãe: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer” o esforço e as      dificuldades por que passavam essas mulheres, esperando longas horas pelo      dia seguinte, para fazerem a ligação. Horas e horas, deitadas no chão, em      condições incómodas.
  
   
    - Passei,      pois, a admirar-lhes ainda mais o espírito empreendedor. Tinham encontrado      um modo expedito para conseguirem obter os rendimentos para se sustentarem      a si e às suas famílias, numa altura em que, entre nós, prevalecia uma      enorme carência dos produtos que elas comercializavam. Outras angolanas, comerciantes      informais, arrojavam-se também por paragens mais complicadas – sem      dominarem o inglês – como a própria África do Sul, Namíbia, e até mesmo o      Dubai.
  
   
    - Felizmente,      a paz e a normalização da vida social permitiram estabelecer os circuitos      comerciais formais, e hoje já podemos adquirir nesses estabelecimentos a      maioria dos bens industriais comuns de que necessitamos. Reduziu-se, pois,      bastante a imagem degradante do passageiro angolano sempre carregado de compras.      Como se fosse um armazém ambulante… É, seguramente, um dos ganhos      económicos e sociais do fim do conflito armado.
  
   
    - A      possibilidade que temos hoje de viajarmos pelo mundo sem carregarmos às      costas o estigma de quem parece estar em busca de um refúgio, de um porto      de abrigo, de um local para trabalhar ou mesmo para estudar, é outra boa      consequência da paz e da normalização da nossa vida.
  
   
    - Hoje, vamos e      voltamos, e festejamos efusivamente – mesmo até com palmas – quando o      avião toca o solo nacional. É o nosso agradecimento por nada de mal nos      ter acontecido no voo. Mas é, sobretudo, a alegria pelo regresso ao ponto      de partida. Deixámos de carregar o estigma de parecermos um povo errante.      Angola é de novo o nosso porto de abrigo, é o nosso torrão de consolo.      Mesmo que, por vezes, seja carente e pouco acolhedora.
  
   
    - Como vos      disse de início, estou em São Paulo, para leccionar algumas aulas. A      cidade de São Paulo é uma cidade muito grande e é, também, uma grande      cidade. Tem a maior área metropolitana do Brasil, da América Latina e até      mesmo do Hemisfério Sul. Possui o 10º maior PIB do mundo. É sede de 2/3      das multinacionais instaladas no Brasil. É uma verdadeira metrópole.
  
   
    - São Paulo é      praticamente contemporânea da cidade de Luanda. Ambas festejam o seu      aniversário no mesmo dia: 25 de Janeiro. São Paulo surgiu 26 anos antes de      Luanda, no ano de 1554, com a edificação, no alto de uma colina escarpada,      de uma povoação de nome São Paulo de Piratininga. Ela nasceu em torno de      um colégio mandado construir por doze padres jesuítas, entre os quais      Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O objectivo era evangelizar os      índios que viviam na região com o mesmo nome: Piratininga.
  
   
    - Luanda      surgiu como povoação colonial em 1576 (uma pequena vila), por determinação      de Paulo Dias de Novais, com o nome de São Paulo de Luanda. Recebeu foral      de cidade cerca de 30 anos mais tarde, em 1605.
  
   
    - Durante a      viagem para São Paulo, fiquei atento ao percurso do avião, correndo sempre      sobre o Atlântico. Pelo monitor instalado no assento de frente, e mais uma      vez, fui olhando para a relação entre Luanda e a cidade do Recife, do      outro lado do Atlântico, na costa brasileira. Se traçarmos uma linha      horizontal a partir de Luanda, depois de percorrer o imenso Oceano, ela      irá tocar precisamente no Recife, a capital do estado do Pernambuco, a      maior aglomeração urbana do Nordeste brasileiro.
  
   
    - O Recife foi      a principal praça dos holandeses no Brasil, um verdadeiro império que se      estendia ao longo da costa até ao norte, no mesmo período em que os      holandeses também dominavam partes da costa angolana, com destaque para      Luanda. Foram expulsos de Luanda em 1648, após sete anos de ocupação, numa      expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, governador do      Rio de Janeiro. A nossa cidade capital passou então a chamar-se São Paulo      da Assunção, em homenagem a Nossa Senhora da Assunção.
  
   
    - Era o      interesse do tráfico de escravos a ditar o comportamento dos governantes      brasileiros. A produção do açúcar no Brasil necessitava de fortes      contingentes de mão-de-obra escrava e muita dela provinha de Angola. Anos      antes, fracassara uma tentativa semelhante sob o comando do governador do      Rio de Janeiro, Francisco de Souto-Maior.
  
   
    - Gosto de      viajar para o Brasil, por muitas razões. Uma delas é a minha curiosidade      por entender melhor este país que é já uma das 10 maiores economias do      mundo.
  
   
    - Gosto imenso      da história do Brasil: rica, multifacetada e, sobretudo, muito ligada à      nossa história. Muitos dos nossos sangues cruzaram-se nesse misterioso percurso      atlântico.
  
   
    - Afinal, é      esse Oceano Atlântico que nos separa. Mas é, igualmente, o Oceano      Atlântico que nos aproxima. Fim do Postal. Vai sem imagens. Penso que as      palavras dizem o suficiente.
  
     
 
 
 
    - Depois de      uma curta ausência, cá estou eu de regresso. Retomei, por isso, os meus habituais      comentários na rádio. Mas, devo dizer que, mesmo à distância, fui sempre remetendo      as minhas habituais crónicas, e uma delas sob a forma de “postal”.
  
   
    - Já tiveram      oportunidade de reparar que os meus “postais” são algo “atípicos”, como      são “atípicas” muitas das coisas que passaram a acontecer entre nós. Os      meus “postais de viagem” chegam sem imagens, e não são acompanhados daquelas      cores e formas que dão beleza aos outros postais, os postais clássicos a      que fomos, afinal, estamos mais habituados. Os meus “postais de viagem” são      apenas mensagens que relatam factos, traduzem ideias, descrevem pormenores      sobre os mais diversos assuntos.
  
   
    - De uma forma      geral, os meus “postais de viagem” expressam alguns dos meus afectos, o      meu carinho pelas pessoas, o modo como vejo as localidades. Por vezes, eles      também abordam uma qualquer perspectiva da própria história.
  
   
    - Os meus      “postais de viagem” são o espelho da minha alma, porque, com eles, eu      quero comunicar com as pessoas, abraçar-me a elas, envolvê-las neste calor      que sinto dentro de mim quando me deparo com algo que me entusiasma e      prende a minha atenção.
  
   
    - Não costumo utilizar      um “postal de viagem” para tratar de cosias desagradáveis. Procuro fugir      às coisas menos simpáticas, para evitar ser contaminado e envolver-me      emocionalmente naquilo que é menos bom, a exemplo daquilo o que se viveu      na última semana aqui em Luanda. Mesmo que, no fundo, eu tenha sabido de      tudo. Ou melhor, eu soube de algumas coisas…
  
   
    - Percebi, por      exemplo, que o clima político interno aqueceu e, no Parlamento, chegou      mesmo ao rubro. Houve quem me tenha dito que ele quase atingiu clímax.      Vejam só o teor de mensagem que recebi: “Sessão de xinguilamento na Casa      das Leis. Deputados do “maioritário” gritaram, insultaram, ofenderam mesmo,      como se tivessem ‘calundús’”.
  
   
    - Logo-logo,      pensei que alguns desses deputados estariam possuídos por espíritos      alheios vindos não sei de onde… Será que teriam vindo dos fundos dos infernos?      Seriam daqueles assim que convivem muito de perto com o belzebú, com o      mafarrico, com o príncipe dos demónios?
  
   
    - Ou, então,      seria apenas um dos efeitos colaterais dos desmaios que vão ocorrendo um      pouco por todo o país e que ainda não têm explicação? Como eu disse numa      das minhas últimas crónicas: se não são motivados por intoxicação, nem mesmo      são histeria colectiva (uma solução o nosso povo já recusou liminarmente),      então, serão o fruto de um feitiço muito forte – uma daquelas ‘makumbas’      importadas do Zaíre… Dizem até que no Zaíre se compra ‘makumba’ nos      mercados, e podemos levá-la em rodelas, em pó em pequenos pacotinhos, e até      em frasquinhos de perfume.
  
   
    - Mesmo assim,      não pus de todo de parte a hipótese de os maus espíritos que tomaram conta      de alguns deputados serem apenas uma simples transladação espiritual      temporária de alguns espíritos vagabundos. Ou seria a encarnação selectiva      do mafarrico nalguns dos corpos eleitos em 2008 e com 82% dos votos?
  
   
    - Xinguilamento      assim não é para gente do povo, porque gente do povo tem fome e não pode      despender tanta energia… Pois é, o xinguilamento do povo é mais contido:      só esperneiam e fazem contorções, reviram os olhos e batem com as palmas      das mãos no chão. E, depois, perdem a consciência por poucos minutos. Para      serem acordados, basta dar-lhes um pequeno tapa na bochecha. E lá está a      dona, de novo de pé, com as mãos na cintura, ajeitando os cabelos, a arranjar      a carapinha desarranjada. E, pronto, fica tudo como dantes…
  
   
    - O      xinguilamento do deputado “maioritário” tem outros contornos. Tem outros      ingredientes, porque ele não salta do banco de madeira, ou de fibra      acrílica, ou de fita plástica (como o do povo). Quando se prepara para      xinguilar, o deputado “maioritário” pula de uma cadeira estufada. Se cair,      cai sobre uma alcatifa – sempre é mais seguro. Ainda por cima, é fofo. É      tudo, afinal, uma questão de estatuto: Gente fina é outra coisa…, até      mesmo quando está com ‘calundús’.
  
   
    - E se for      deputada “maioritária”, como é que será o xinguilamento? Vou tentar      descobrir… Antes do início da sessão de xinguilamento, a deputada      “maioritária” ajeita o cabelo; se for deputada carapinhosa, e como,      geralmente, usa peruca daquelas especiais – ou não fosse a ilustre senhora      também uma deputada especial… – então ela espeta todos os dedos dentro do      postiço, e agita-o, para impressionar; depois, liga o microfone com um      clique – naquele jeito de quem vai dizer uma frase que ficará para os      anais da história; de seguida, olha para os dois lados da vasta sala      parlamentar, com um ligeiro sorriso cúmplice para os seus correligionários      – como que a pedir assentimento (um assentimento que tanto pode ser explícito      como implícito), por uma questão de disciplina partidária.
  
   
    - Se a nossa deputada      “maioritária” usar óculos, dá-lhes um toquezinho, para os endireitar – ficaria      mais chique deixá-los cair ligeiramente ao longo do nariz. Dava-lhe um ar      de pessoa inteligente e muito preocupada com o conteúdo do seu discurso. Logo      depois, e sem perder o fôlego, a deputada “maioritária” começa a despejar      cobras e lagartos… Da sua boca ainda besuntada de batom, seguidinho, e quase      que cronometrado, sai de tudo: insultos, impropérios, até “faltas de abuso”      – como diz o nosso povo. Saem também acusações, recriminações, e tudo      mais. Finalmente, e depois de tanta exaltação, a deputada “maioritária”      cala-se. Fica com a sensação de missão cumprida.
  
   
    - Por norma, segue-se      outro deputado “maioritário” (eles são bwé), ansioso por tomar a palavra.      Esse também quer sair bem na fotografia… E vem dizer a mesma coisa, como      se estivesse a recitar uma cartilha: “a guerra, as mortes, a destruição,      as bruxas na fogueiras”. Depois vêm “as traições, o imperialismo, o apartheid,      os racistas sul-africanos…” E, para terminar, já ofegante: “a inveja, o      despeito, o “deixem-nos trabalhar pelo bem do povo”, ‘o “M” é o povo e o      povo é o “M”’, o pensamento estratégico do camarada presidente sem o qual      não seríamos nada e até mesmo o país já teria deixado de o ser…”. Segundo      se diz, há mesmo quem já tivesse terminado o seu “discurso histórico” com      um “xôxo” e a pôr língua de fora, como que a querer dizer: “Uoh!!! Te pus      barra!...”.
  
   
    - Se estivesse      em Luanda, quando se deu a recente sessão de “xinguilamento” no nosso Parlamento,      eu teria aconselhado os deputados “possessos” a consultarem o substituto      legal do “Velho João-Diá-Nzambi”, para ele – no seu saber ancestral,      herdado do grande adivinho e curandeiro – lhes receitar um “milongo” muito      forte, capaz de os libertar dos maus espíritos…
  
   
    - Soube que houve      deputados do “maioritário” que tiveram a perigosa e triste iniciativa de      esgrimir argumentos étnicos, para assim mais facilmente rebaterem as ideias      políticas apresentadas por deputados da UNITA. Isso à propósito do Pacote      Legislativo Eleitoral…E mais ainda: que alguns deputados do “maioritário”      reagiram ao protesto dos deputados da UNITA com apupos e insultos de baixo      jaez.
  
   
    - Inclusive, li      que uma deputada do “maioritário” chegou a um tal êxtase no seu “xinguilamento”      que fez lembrar a “Joana Maluca” nos piores momentos: desgrenhou-se e perdeu      a maquilhagem. Se, de facto, a tal deputada “maioritária” tinha verniz, então,      naquele momento todo ele se quebrou ali mesmo, na presença dos nossos      representantes, tanto os da “posição” como os da oposição. Ai, como é doce      e saboroso ser-se do Poder… Ser-se sempre do Poder, em qualquer Poder…      Mesmo até que o Poder faça uma pirueta numa reviravolta de 180 graus… Bom,      podem ser apenas alguns lapsos de memória!...
  
   
    - Não vi      imagens de televisão, porque estava longe e a nossa TPA tem alcance      limitado. Mas houve quem me tivesse dito que a deputada mais “assanhada”      fazia lembrar a “Madame Min” – aquela da Disney – a ensaiar um duelo de      magia com o “Mago Merlin”, o mestre do jovem Rei Artur. Disseram-me também      que os outros deputados “assanhados” – os sempre de serviço – faziam      lembrar o “Bibi-Aluluxa”, aquele dos meus tempos de miúdo do Bairro      Marçal, aquele que, por volta das 10 horas da manhã, após 3 ou 4      “copos-de-15” já não se lhe entendia o que dizia. Falava só… Parecia que      queriam lutar ali mesmo, na Casa das Leis… 
  
   
    - De modo      algum devo estranhar o que aconteceu no nosso Parlamento, no dia em que se      aprovou o documento que vai permitir fazer passar o Pacote Legislativo Eleitoral.      Em outros parlamentos, até mesmo em países democráticos, a pancadaria entre      os eleitos não é novidade. Isso já não escandaliza ninguém. Há mesmo socos,      arremesso de papéis. Voam sapatos. Puxam-se os cabelos e as gravatas dos      adversários. Dão-se mesmo “baçulas”. Já vi até parlamentares japoneses a      darem ‘quedas-a-pescador’ a outros deputados. Só que isso é lá na Ásia…
  
   
    - No      parlamento de Taiwan, por exemplo, não há muito tempo, um deputado      “zangulou” um adversário. E os seus colegas de bancada do deputado      “zangulador” gritaram, eufóricos: “Muá-lá-lá”… Claro, gritaram “Muá-lá-lá”,      mas, em chinês de Taiwan, para serem entendidos. No troco, e para      estimularem o colega que ainda hesitava, os deputados da outra bancada      responderem: “Bi-lo! Bi-lo! Bi-lo!”. No balanço, saíram cabeças partidas,      narizes quebrados. Óculos desaparecidos, fatos amarfanhados.
  
   
    - O continente      asiático é ainda hoje o líder neste tipo de comportamentos. É o campeão      destacado em imagens (que já não são inéditas) de pugilato parlamentar,      onde se mistura “kung fu” com “wrestling”, e até mesmo com “kick boxing”.  
  
   
    - Se prosseguirmos      no ritmo actual, dentro em breve, seguramente, estaremos em condições de      disputar a liderança da arruaça parlamentar com os asiáticos.
  
   
    - Por que não      propormo-nos a organizar um torneio internacional dessa nova modalidade      parlamentar? Por que não mesmo, ganharmos, já que “estamos sempre a subir”?      Seria assim mais uma taça para o nosso país. O que até é muito bom em      período eleitoral… 
  
     
 
 
 
    - Envio-vos      este postal de São Paulo, Brasil, onde estou desde há alguns dias, para      leccionar parte de uma disciplina na Pontifícia Universidade Católica de      São Paulo. Para mim, vir a São Paulo deixou de constituir novidade, dado      que, nos últimos anos, tenho estado nesta cidade com alguma regularidade,      mesmo que por motivos diversos.
  
   
    - Recordo-me      que, da primeira vez que vim a São Paulo, transitei por Joanesburgo e      pernoitei no hotel do aeroporto, a espera da ligação no dia seguinte. Trazia      um forte paludismo encubado no meu organismo, pelo que passei longas horas      de sofrimento. Felizmente, os comprimidos de quinino que comprei no      aeroporto reduziram o tempo e a profundidade da minha angústia.
  
   
    - Corria,      pois, o risco de ser medicado e trado no Brasil. Se tal sucedesse,      declarariam certamente que tinha apanhado o dengue, uma doença tropical      que apresenta os sintomas da malária, confundindo-as, e com um enorme      risco.
  
   
    - O dengue e a      malária são como que primos em primeiro grau, mesmo que de estirpes virais      diferentes. Por isso devem ser tratados com terapêuticas distintas.
  
   
    - Apanhamos o dengue      se formos picados pela fêmea contaminada do mosquito Aedes aegypti ou Aedes      albopitus. Por sua vez, o paludismo é transmitido pela picadela da      fêmea do mosquito Anophefes. Por      isso, sempre que venho ao Brasil, cuido primeiro de saber se tenho ou não encubado      o vírus deste último malandro…
  
   
    - Da primeira vez      que viajei para o Brasil, guardo a má memória dessa doença mas,      igualmente, do contacto que tive com algumas nossas compatriotas que      faziam daquela rota o seu negócio. Vinham regularmente a este lado do      Atlântico onde me encontro agora para buscar mercadorias e, depois, as      venderem em Angola.
  
   
    - “Vi      propriamente visto” – creio que assim diria Luís de Camões. Ou então, diria      a minha mãe: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer” o esforço e as      dificuldades por que passavam essas mulheres, esperando longas horas pelo      dia seguinte, para fazerem a ligação. Horas e horas, deitadas no chão, em      condições incómodas.
  
   
    - Passei,      pois, a admirar-lhes ainda mais o espírito empreendedor. Tinham encontrado      um modo expedito para conseguirem obter os rendimentos para se sustentarem      a si e às suas famílias, numa altura em que, entre nós, prevalecia uma      enorme carência dos produtos que elas comercializavam. Outras angolanas, comerciantes      informais, arrojavam-se também por paragens mais complicadas – sem      dominarem o inglês – como a própria África do Sul, Namíbia, e até mesmo o      Dubai.
  
   
    - Felizmente,      a paz e a normalização da vida social permitiram estabelecer os circuitos      comerciais formais, e hoje já podemos adquirir nesses estabelecimentos a      maioria dos bens industriais comuns de que necessitamos. Reduziu-se, pois,      bastante a imagem degradante do passageiro angolano sempre carregado de compras.      Como se fosse um armazém ambulante… É, seguramente, um dos ganhos      económicos e sociais do fim do conflito armado.
  
   
    - A      possibilidade que temos hoje de viajarmos pelo mundo sem carregarmos às      costas o estigma de quem parece estar em busca de um refúgio, de um porto      de abrigo, de um local para trabalhar ou mesmo para estudar, é outra boa      consequência da paz e da normalização da nossa vida.
  
   
    - Hoje, vamos e      voltamos, e festejamos efusivamente – mesmo até com palmas – quando o      avião toca o solo nacional. É o nosso agradecimento por nada de mal nos      ter acontecido no voo. Mas é, sobretudo, a alegria pelo regresso ao ponto      de partida. Deixámos de carregar o estigma de parecermos um povo errante.      Angola é de novo o nosso porto de abrigo, é o nosso torrão de consolo.      Mesmo que, por vezes, seja carente e pouco acolhedora.
  
   
    - Como vos      disse de início, estou em São Paulo, para leccionar algumas aulas. A      cidade de São Paulo é uma cidade muito grande e é, também, uma grande      cidade. Tem a maior área metropolitana do Brasil, da América Latina e até      mesmo do Hemisfério Sul. Possui o 10º maior PIB do mundo. É sede de 2/3      das multinacionais instaladas no Brasil. É uma verdadeira metrópole.
  
   
    - São Paulo é      praticamente contemporânea da cidade de Luanda. Ambas festejam o seu      aniversário no mesmo dia: 25 de Janeiro. São Paulo surgiu 26 anos antes de      Luanda, no ano de 1554, com a edificação, no alto de uma colina escarpada,      de uma povoação de nome São Paulo de Piratininga. Ela nasceu em torno de      um colégio mandado construir por doze padres jesuítas, entre os quais      Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O objectivo era evangelizar os      índios que viviam na região com o mesmo nome: Piratininga.
  
   
    - Luanda      surgiu como povoação colonial em 1576 (uma pequena vila), por determinação      de Paulo Dias de Novais, com o nome de São Paulo de Luanda. Recebeu foral      de cidade cerca de 30 anos mais tarde, em 1605.
  
   
    - Durante a      viagem para São Paulo, fiquei atento ao percurso do avião, correndo sempre      sobre o Atlântico. Pelo monitor instalado no assento de frente, e mais uma      vez, fui olhando para a relação entre Luanda e a cidade do Recife, do      outro lado do Atlântico, na costa brasileira. Se traçarmos uma linha      horizontal a partir de Luanda, depois de percorrer o imenso Oceano, ela      irá tocar precisamente no Recife, a capital do estado do Pernambuco, a      maior aglomeração urbana do Nordeste brasileiro.
  
   
    - O Recife foi      a principal praça dos holandeses no Brasil, um verdadeiro império que se      estendia ao longo da costa até ao norte, no mesmo período em que os      holandeses também dominavam partes da costa angolana, com destaque para      Luanda. Foram expulsos de Luanda em 1648, após sete anos de ocupação, numa      expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, governador do      Rio de Janeiro. A nossa cidade capital passou então a chamar-se São Paulo      da Assunção, em homenagem a Nossa Senhora da Assunção.
  
   
    - Era o      interesse do tráfico de escravos a ditar o comportamento dos governantes      brasileiros. A produção do açúcar no Brasil necessitava de fortes      contingentes de mão-de-obra escrava e muita dela provinha de Angola. Anos      antes, fracassara uma tentativa semelhante sob o comando do governador do      Rio de Janeiro, Francisco de Souto-Maior.
  
   
    - Gosto de      viajar para o Brasil, por muitas razões. Uma delas é a minha curiosidade      por entender melhor este país que é já uma das 10 maiores economias do      mundo.
  
   
    - Gosto imenso      da história do Brasil: rica, multifacetada e, sobretudo, muito ligada à      nossa história. Muitos dos nossos sangues cruzaram-se nesse misterioso percurso      atlântico.
  
   
  Afinal, é esse Oceano Atlântico que nos separa. Mas é, igualmente, o Oceano Atlântico que nos aproxima. Fim do Postal. Vai sem imagens. Penso que as palavras dizem o suficiente.