quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O ATLÂNTICO QUE NOS SEPARA E QUE NOS APROXIMA

  1. Envio-vos este postal de São Paulo, Brasil, onde estou desde há alguns dias, para leccionar parte de uma disciplina na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para mim, vir a São Paulo deixou de constituir novidade, dado que, nos últimos anos, tenho estado nesta cidade com alguma regularidade, mesmo que por motivos diversos.

  1. Recordo-me que, da primeira vez que vim a São Paulo, transitei por Joanesburgo e pernoitei no hotel do aeroporto, a espera da ligação no dia seguinte. Trazia um forte paludismo encubado no meu organismo, pelo que passei longas horas de sofrimento. Felizmente, os comprimidos de quinino que comprei no aeroporto reduziram o tempo e a profundidade da minha angústia.

  1. Corria, pois, o risco de ser medicado e trado no Brasil. Se tal sucedesse, declarariam certamente que tinha apanhado o dengue, uma doença tropical que apresenta os sintomas da malária, confundindo-as, e com um enorme risco.

  1. O dengue e a malária são como que primos em primeiro grau, mesmo que de estirpes virais diferentes. Por isso devem ser tratados com terapêuticas distintas.

  1. Apanhamos o dengue se formos picados pela fêmea contaminada do mosquito Aedes aegypti ou Aedes albopitus. Por sua vez, o paludismo é transmitido pela picadela da fêmea do mosquito Anophefes. Por isso, sempre que venho ao Brasil, cuido primeiro de saber se tenho ou não encubado o vírus deste último malandro…

  1. Da primeira vez que viajei para o Brasil, guardo a má memória dessa doença mas, igualmente, do contacto que tive com algumas nossas compatriotas que faziam daquela rota o seu negócio. Vinham regularmente a este lado do Atlântico onde me encontro agora para buscar mercadorias e, depois, as venderem em Angola.

  1. “Vi propriamente visto” – creio que assim diria Luís de Camões. Ou então, diria a minha mãe: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer” o esforço e as dificuldades por que passavam essas mulheres, esperando longas horas pelo dia seguinte, para fazerem a ligação. Horas e horas, deitadas no chão, em condições incómodas.

  1. Passei, pois, a admirar-lhes ainda mais o espírito empreendedor. Tinham encontrado um modo expedito para conseguirem obter os rendimentos para se sustentarem a si e às suas famílias, numa altura em que, entre nós, prevalecia uma enorme carência dos produtos que elas comercializavam. Outras angolanas, comerciantes informais, arrojavam-se também por paragens mais complicadas – sem dominarem o inglês – como a própria África do Sul, Namíbia, e até mesmo o Dubai.

  1. Felizmente, a paz e a normalização da vida social permitiram estabelecer os circuitos comerciais formais, e hoje já podemos adquirir nesses estabelecimentos a maioria dos bens industriais comuns de que necessitamos. Reduziu-se, pois, bastante a imagem degradante do passageiro angolano sempre carregado de compras. Como se fosse um armazém ambulante… É, seguramente, um dos ganhos económicos e sociais do fim do conflito armado.

  1. A possibilidade que temos hoje de viajarmos pelo mundo sem carregarmos às costas o estigma de quem parece estar em busca de um refúgio, de um porto de abrigo, de um local para trabalhar ou mesmo para estudar, é outra boa consequência da paz e da normalização da nossa vida.

  1. Hoje, vamos e voltamos, e festejamos efusivamente – mesmo até com palmas – quando o avião toca o solo nacional. É o nosso agradecimento por nada de mal nos ter acontecido no voo. Mas é, sobretudo, a alegria pelo regresso ao ponto de partida. Deixámos de carregar o estigma de parecermos um povo errante. Angola é de novo o nosso porto de abrigo, é o nosso torrão de consolo. Mesmo que, por vezes, seja carente e pouco acolhedora.

  1. Como vos disse de início, estou em São Paulo, para leccionar algumas aulas. A cidade de São Paulo é uma cidade muito grande e é, também, uma grande cidade. Tem a maior área metropolitana do Brasil, da América Latina e até mesmo do Hemisfério Sul. Possui o 10º maior PIB do mundo. É sede de 2/3 das multinacionais instaladas no Brasil. É uma verdadeira metrópole.

  1. São Paulo é praticamente contemporânea da cidade de Luanda. Ambas festejam o seu aniversário no mesmo dia: 25 de Janeiro. São Paulo surgiu 26 anos antes de Luanda, no ano de 1554, com a edificação, no alto de uma colina escarpada, de uma povoação de nome São Paulo de Piratininga. Ela nasceu em torno de um colégio mandado construir por doze padres jesuítas, entre os quais Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O objectivo era evangelizar os índios que viviam na região com o mesmo nome: Piratininga.

  1. Luanda surgiu como povoação colonial em 1576 (uma pequena vila), por determinação de Paulo Dias de Novais, com o nome de São Paulo de Luanda. Recebeu foral de cidade cerca de 30 anos mais tarde, em 1605.

  1. Durante a viagem para São Paulo, fiquei atento ao percurso do avião, correndo sempre sobre o Atlântico. Pelo monitor instalado no assento de frente, e mais uma vez, fui olhando para a relação entre Luanda e a cidade do Recife, do outro lado do Atlântico, na costa brasileira. Se traçarmos uma linha horizontal a partir de Luanda, depois de percorrer o imenso Oceano, ela irá tocar precisamente no Recife, a capital do estado do Pernambuco, a maior aglomeração urbana do Nordeste brasileiro.

  1. O Recife foi a principal praça dos holandeses no Brasil, um verdadeiro império que se estendia ao longo da costa até ao norte, no mesmo período em que os holandeses também dominavam partes da costa angolana, com destaque para Luanda. Foram expulsos de Luanda em 1648, após sete anos de ocupação, numa expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro. A nossa cidade capital passou então a chamar-se São Paulo da Assunção, em homenagem a Nossa Senhora da Assunção.

  1. Era o interesse do tráfico de escravos a ditar o comportamento dos governantes brasileiros. A produção do açúcar no Brasil necessitava de fortes contingentes de mão-de-obra escrava e muita dela provinha de Angola. Anos antes, fracassara uma tentativa semelhante sob o comando do governador do Rio de Janeiro, Francisco de Souto-Maior.

  1. Gosto de viajar para o Brasil, por muitas razões. Uma delas é a minha curiosidade por entender melhor este país que é já uma das 10 maiores economias do mundo.

  1. Gosto imenso da história do Brasil: rica, multifacetada e, sobretudo, muito ligada à nossa história. Muitos dos nossos sangues cruzaram-se nesse misterioso percurso atlântico.

  1. Afinal, é esse Oceano Atlântico que nos separa. Mas é, igualmente, o Oceano Atlântico que nos aproxima. Fim do Postal. Vai sem imagens. Penso que as palavras dizem o suficiente.

UM PARLAMENTO ATÍPICO

  1. Depois de uma curta ausência, cá estou eu de regresso. Retomei, por isso, os meus habituais comentários na rádio. Mas, devo dizer que, mesmo à distância, fui sempre remetendo as minhas habituais crónicas, e uma delas sob a forma de “postal”.

  1. Já tiveram oportunidade de reparar que os meus “postais” são algo “atípicos”, como são “atípicas” muitas das coisas que passaram a acontecer entre nós. Os meus “postais de viagem” chegam sem imagens, e não são acompanhados daquelas cores e formas que dão beleza aos outros postais, os postais clássicos a que fomos, afinal, estamos mais habituados. Os meus “postais de viagem” são apenas mensagens que relatam factos, traduzem ideias, descrevem pormenores sobre os mais diversos assuntos.

  1. De uma forma geral, os meus “postais de viagem” expressam alguns dos meus afectos, o meu carinho pelas pessoas, o modo como vejo as localidades. Por vezes, eles também abordam uma qualquer perspectiva da própria história.

  1. Os meus “postais de viagem” são o espelho da minha alma, porque, com eles, eu quero comunicar com as pessoas, abraçar-me a elas, envolvê-las neste calor que sinto dentro de mim quando me deparo com algo que me entusiasma e prende a minha atenção.

  1. Não costumo utilizar um “postal de viagem” para tratar de cosias desagradáveis. Procuro fugir às coisas menos simpáticas, para evitar ser contaminado e envolver-me emocionalmente naquilo que é menos bom, a exemplo daquilo o que se viveu na última semana aqui em Luanda. Mesmo que, no fundo, eu tenha sabido de tudo. Ou melhor, eu soube de algumas coisas…

  1. Percebi, por exemplo, que o clima político interno aqueceu e, no Parlamento, chegou mesmo ao rubro. Houve quem me tenha dito que ele quase atingiu clímax. Vejam só o teor de mensagem que recebi: “Sessão de xinguilamento na Casa das Leis. Deputados do “maioritário” gritaram, insultaram, ofenderam mesmo, como se tivessem ‘calundús’”.

  1. Logo-logo, pensei que alguns desses deputados estariam possuídos por espíritos alheios vindos não sei de onde… Será que teriam vindo dos fundos dos infernos? Seriam daqueles assim que convivem muito de perto com o belzebú, com o mafarrico, com o príncipe dos demónios?

  1. Ou, então, seria apenas um dos efeitos colaterais dos desmaios que vão ocorrendo um pouco por todo o país e que ainda não têm explicação? Como eu disse numa das minhas últimas crónicas: se não são motivados por intoxicação, nem mesmo são histeria colectiva (uma solução o nosso povo já recusou liminarmente), então, serão o fruto de um feitiço muito forte – uma daquelas ‘makumbas’ importadas do Zaíre… Dizem até que no Zaíre se compra ‘makumba’ nos mercados, e podemos levá-la em rodelas, em pó em pequenos pacotinhos, e até em frasquinhos de perfume.

  1. Mesmo assim, não pus de todo de parte a hipótese de os maus espíritos que tomaram conta de alguns deputados serem apenas uma simples transladação espiritual temporária de alguns espíritos vagabundos. Ou seria a encarnação selectiva do mafarrico nalguns dos corpos eleitos em 2008 e com 82% dos votos?

  1. Xinguilamento assim não é para gente do povo, porque gente do povo tem fome e não pode despender tanta energia… Pois é, o xinguilamento do povo é mais contido: só esperneiam e fazem contorções, reviram os olhos e batem com as palmas das mãos no chão. E, depois, perdem a consciência por poucos minutos. Para serem acordados, basta dar-lhes um pequeno tapa na bochecha. E lá está a dona, de novo de pé, com as mãos na cintura, ajeitando os cabelos, a arranjar a carapinha desarranjada. E, pronto, fica tudo como dantes…

  1. O xinguilamento do deputado “maioritário” tem outros contornos. Tem outros ingredientes, porque ele não salta do banco de madeira, ou de fibra acrílica, ou de fita plástica (como o do povo). Quando se prepara para xinguilar, o deputado “maioritário” pula de uma cadeira estufada. Se cair, cai sobre uma alcatifa – sempre é mais seguro. Ainda por cima, é fofo. É tudo, afinal, uma questão de estatuto: Gente fina é outra coisa…, até mesmo quando está com ‘calundús’.

  1. E se for deputada “maioritária”, como é que será o xinguilamento? Vou tentar descobrir… Antes do início da sessão de xinguilamento, a deputada “maioritária” ajeita o cabelo; se for deputada carapinhosa, e como, geralmente, usa peruca daquelas especiais – ou não fosse a ilustre senhora também uma deputada especial… – então ela espeta todos os dedos dentro do postiço, e agita-o, para impressionar; depois, liga o microfone com um clique – naquele jeito de quem vai dizer uma frase que ficará para os anais da história; de seguida, olha para os dois lados da vasta sala parlamentar, com um ligeiro sorriso cúmplice para os seus correligionários – como que a pedir assentimento (um assentimento que tanto pode ser explícito como implícito), por uma questão de disciplina partidária.

  1. Se a nossa deputada “maioritária” usar óculos, dá-lhes um toquezinho, para os endireitar – ficaria mais chique deixá-los cair ligeiramente ao longo do nariz. Dava-lhe um ar de pessoa inteligente e muito preocupada com o conteúdo do seu discurso. Logo depois, e sem perder o fôlego, a deputada “maioritária” começa a despejar cobras e lagartos… Da sua boca ainda besuntada de batom, seguidinho, e quase que cronometrado, sai de tudo: insultos, impropérios, até “faltas de abuso” – como diz o nosso povo. Saem também acusações, recriminações, e tudo mais. Finalmente, e depois de tanta exaltação, a deputada “maioritária” cala-se. Fica com a sensação de missão cumprida.

  1. Por norma, segue-se outro deputado “maioritário” (eles são bwé), ansioso por tomar a palavra. Esse também quer sair bem na fotografia… E vem dizer a mesma coisa, como se estivesse a recitar uma cartilha: “a guerra, as mortes, a destruição, as bruxas na fogueiras”. Depois vêm “as traições, o imperialismo, o apartheid, os racistas sul-africanos…” E, para terminar, já ofegante: “a inveja, o despeito, o “deixem-nos trabalhar pelo bem do povo”, ‘o “M” é o povo e o povo é o “M”’, o pensamento estratégico do camarada presidente sem o qual não seríamos nada e até mesmo o país já teria deixado de o ser…”. Segundo se diz, há mesmo quem já tivesse terminado o seu “discurso histórico” com um “xôxo” e a pôr língua de fora, como que a querer dizer: “Uoh!!! Te pus barra!...”.

  1. Se estivesse em Luanda, quando se deu a recente sessão de “xinguilamento” no nosso Parlamento, eu teria aconselhado os deputados “possessos” a consultarem o substituto legal do “Velho João-Diá-Nzambi”, para ele – no seu saber ancestral, herdado do grande adivinho e curandeiro – lhes receitar um “milongo” muito forte, capaz de os libertar dos maus espíritos…

  1. Soube que houve deputados do “maioritário” que tiveram a perigosa e triste iniciativa de esgrimir argumentos étnicos, para assim mais facilmente rebaterem as ideias políticas apresentadas por deputados da UNITA. Isso à propósito do Pacote Legislativo Eleitoral…E mais ainda: que alguns deputados do “maioritário” reagiram ao protesto dos deputados da UNITA com apupos e insultos de baixo jaez.

  1. Inclusive, li que uma deputada do “maioritário” chegou a um tal êxtase no seu “xinguilamento” que fez lembrar a “Joana Maluca” nos piores momentos: desgrenhou-se e perdeu a maquilhagem. Se, de facto, a tal deputada “maioritária” tinha verniz, então, naquele momento todo ele se quebrou ali mesmo, na presença dos nossos representantes, tanto os da “posição” como os da oposição. Ai, como é doce e saboroso ser-se do Poder… Ser-se sempre do Poder, em qualquer Poder… Mesmo até que o Poder faça uma pirueta numa reviravolta de 180 graus… Bom, podem ser apenas alguns lapsos de memória!...

  1. Não vi imagens de televisão, porque estava longe e a nossa TPA tem alcance limitado. Mas houve quem me tivesse dito que a deputada mais “assanhada” fazia lembrar a “Madame Min” – aquela da Disney – a ensaiar um duelo de magia com o “Mago Merlin”, o mestre do jovem Rei Artur. Disseram-me também que os outros deputados “assanhados” – os sempre de serviço – faziam lembrar o “Bibi-Aluluxa”, aquele dos meus tempos de miúdo do Bairro Marçal, aquele que, por volta das 10 horas da manhã, após 3 ou 4 “copos-de-15” já não se lhe entendia o que dizia. Falava só… Parecia que queriam lutar ali mesmo, na Casa das Leis…

  1. De modo algum devo estranhar o que aconteceu no nosso Parlamento, no dia em que se aprovou o documento que vai permitir fazer passar o Pacote Legislativo Eleitoral. Em outros parlamentos, até mesmo em países democráticos, a pancadaria entre os eleitos não é novidade. Isso já não escandaliza ninguém. Há mesmo socos, arremesso de papéis. Voam sapatos. Puxam-se os cabelos e as gravatas dos adversários. Dão-se mesmo “baçulas”. Já vi até parlamentares japoneses a darem ‘quedas-a-pescador’ a outros deputados. Só que isso é lá na Ásia…

  1. No parlamento de Taiwan, por exemplo, não há muito tempo, um deputado “zangulou” um adversário. E os seus colegas de bancada do deputado “zangulador” gritaram, eufóricos: “Muá-lá-lá”… Claro, gritaram “Muá-lá-lá”, mas, em chinês de Taiwan, para serem entendidos. No troco, e para estimularem o colega que ainda hesitava, os deputados da outra bancada responderem: “Bi-lo! Bi-lo! Bi-lo!”. No balanço, saíram cabeças partidas, narizes quebrados. Óculos desaparecidos, fatos amarfanhados.

  1. O continente asiático é ainda hoje o líder neste tipo de comportamentos. É o campeão destacado em imagens (que já não são inéditas) de pugilato parlamentar, onde se mistura “kung fu” com “wrestling”, e até mesmo com “kick boxing”.

  1. Se prosseguirmos no ritmo actual, dentro em breve, seguramente, estaremos em condições de disputar a liderança da arruaça parlamentar com os asiáticos.

  1. Por que não propormo-nos a organizar um torneio internacional dessa nova modalidade parlamentar? Por que não mesmo, ganharmos, já que “estamos sempre a subir”? Seria assim mais uma taça para o nosso país. O que até é muito bom em período eleitoral…

O ATLÂNTICO QUE NOS SEPARA E QUE NOS APROXIMA

  1. Envio-vos este postal de São Paulo, Brasil, onde estou desde há alguns dias, para leccionar parte de uma disciplina na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para mim, vir a São Paulo deixou de constituir novidade, dado que, nos últimos anos, tenho estado nesta cidade com alguma regularidade, mesmo que por motivos diversos.

  1. Recordo-me que, da primeira vez que vim a São Paulo, transitei por Joanesburgo e pernoitei no hotel do aeroporto, a espera da ligação no dia seguinte. Trazia um forte paludismo encubado no meu organismo, pelo que passei longas horas de sofrimento. Felizmente, os comprimidos de quinino que comprei no aeroporto reduziram o tempo e a profundidade da minha angústia.

  1. Corria, pois, o risco de ser medicado e trado no Brasil. Se tal sucedesse, declarariam certamente que tinha apanhado o dengue, uma doença tropical que apresenta os sintomas da malária, confundindo-as, e com um enorme risco.

  1. O dengue e a malária são como que primos em primeiro grau, mesmo que de estirpes virais diferentes. Por isso devem ser tratados com terapêuticas distintas.

  1. Apanhamos o dengue se formos picados pela fêmea contaminada do mosquito Aedes aegypti ou Aedes albopitus. Por sua vez, o paludismo é transmitido pela picadela da fêmea do mosquito Anophefes. Por isso, sempre que venho ao Brasil, cuido primeiro de saber se tenho ou não encubado o vírus deste último malandro…

  1. Da primeira vez que viajei para o Brasil, guardo a má memória dessa doença mas, igualmente, do contacto que tive com algumas nossas compatriotas que faziam daquela rota o seu negócio. Vinham regularmente a este lado do Atlântico onde me encontro agora para buscar mercadorias e, depois, as venderem em Angola.

  1. “Vi propriamente visto” – creio que assim diria Luís de Camões. Ou então, diria a minha mãe: “Vi com estes olhos que a terra há-de comer” o esforço e as dificuldades por que passavam essas mulheres, esperando longas horas pelo dia seguinte, para fazerem a ligação. Horas e horas, deitadas no chão, em condições incómodas.

  1. Passei, pois, a admirar-lhes ainda mais o espírito empreendedor. Tinham encontrado um modo expedito para conseguirem obter os rendimentos para se sustentarem a si e às suas famílias, numa altura em que, entre nós, prevalecia uma enorme carência dos produtos que elas comercializavam. Outras angolanas, comerciantes informais, arrojavam-se também por paragens mais complicadas – sem dominarem o inglês – como a própria África do Sul, Namíbia, e até mesmo o Dubai.

  1. Felizmente, a paz e a normalização da vida social permitiram estabelecer os circuitos comerciais formais, e hoje já podemos adquirir nesses estabelecimentos a maioria dos bens industriais comuns de que necessitamos. Reduziu-se, pois, bastante a imagem degradante do passageiro angolano sempre carregado de compras. Como se fosse um armazém ambulante… É, seguramente, um dos ganhos económicos e sociais do fim do conflito armado.

  1. A possibilidade que temos hoje de viajarmos pelo mundo sem carregarmos às costas o estigma de quem parece estar em busca de um refúgio, de um porto de abrigo, de um local para trabalhar ou mesmo para estudar, é outra boa consequência da paz e da normalização da nossa vida.

  1. Hoje, vamos e voltamos, e festejamos efusivamente – mesmo até com palmas – quando o avião toca o solo nacional. É o nosso agradecimento por nada de mal nos ter acontecido no voo. Mas é, sobretudo, a alegria pelo regresso ao ponto de partida. Deixámos de carregar o estigma de parecermos um povo errante. Angola é de novo o nosso porto de abrigo, é o nosso torrão de consolo. Mesmo que, por vezes, seja carente e pouco acolhedora.

  1. Como vos disse de início, estou em São Paulo, para leccionar algumas aulas. A cidade de São Paulo é uma cidade muito grande e é, também, uma grande cidade. Tem a maior área metropolitana do Brasil, da América Latina e até mesmo do Hemisfério Sul. Possui o 10º maior PIB do mundo. É sede de 2/3 das multinacionais instaladas no Brasil. É uma verdadeira metrópole.

  1. São Paulo é praticamente contemporânea da cidade de Luanda. Ambas festejam o seu aniversário no mesmo dia: 25 de Janeiro. São Paulo surgiu 26 anos antes de Luanda, no ano de 1554, com a edificação, no alto de uma colina escarpada, de uma povoação de nome São Paulo de Piratininga. Ela nasceu em torno de um colégio mandado construir por doze padres jesuítas, entre os quais Manuel da Nóbrega e José de Anchieta. O objectivo era evangelizar os índios que viviam na região com o mesmo nome: Piratininga.

  1. Luanda surgiu como povoação colonial em 1576 (uma pequena vila), por determinação de Paulo Dias de Novais, com o nome de São Paulo de Luanda. Recebeu foral de cidade cerca de 30 anos mais tarde, em 1605.

  1. Durante a viagem para São Paulo, fiquei atento ao percurso do avião, correndo sempre sobre o Atlântico. Pelo monitor instalado no assento de frente, e mais uma vez, fui olhando para a relação entre Luanda e a cidade do Recife, do outro lado do Atlântico, na costa brasileira. Se traçarmos uma linha horizontal a partir de Luanda, depois de percorrer o imenso Oceano, ela irá tocar precisamente no Recife, a capital do estado do Pernambuco, a maior aglomeração urbana do Nordeste brasileiro.

  1. O Recife foi a principal praça dos holandeses no Brasil, um verdadeiro império que se estendia ao longo da costa até ao norte, no mesmo período em que os holandeses também dominavam partes da costa angolana, com destaque para Luanda. Foram expulsos de Luanda em 1648, após sete anos de ocupação, numa expedição comandada por Salvador Correia de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro. A nossa cidade capital passou então a chamar-se São Paulo da Assunção, em homenagem a Nossa Senhora da Assunção.

  1. Era o interesse do tráfico de escravos a ditar o comportamento dos governantes brasileiros. A produção do açúcar no Brasil necessitava de fortes contingentes de mão-de-obra escrava e muita dela provinha de Angola. Anos antes, fracassara uma tentativa semelhante sob o comando do governador do Rio de Janeiro, Francisco de Souto-Maior.

  1. Gosto de viajar para o Brasil, por muitas razões. Uma delas é a minha curiosidade por entender melhor este país que é já uma das 10 maiores economias do mundo.

  1. Gosto imenso da história do Brasil: rica, multifacetada e, sobretudo, muito ligada à nossa história. Muitos dos nossos sangues cruzaram-se nesse misterioso percurso atlântico.

Afinal, é esse Oceano Atlântico que nos separa. Mas é, igualmente, o Oceano Atlântico que nos aproxima. Fim do Postal. Vai sem imagens. Penso que as palavras dizem o suficiente.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

UMA AVALIAÇÃO DO DESEMPENHO DA OUA

  1. No dia 25 de Maio de 1963, constituiu-se, em Addis Abeba, a Organização de Unidade Africana (OUA). São já passados 48 anos desde essa data que é memorável e de grande simbolismo para o nosso continente, cujo acto constitutivo contou com a participação de representantes de 32 países africanos independentes, assim como diversos movimentos de libertação.

  1. Do documento constitutivo da Organização de Unidade Africana constavam 6 grandes objectivos:

· Promoção da unidade e solidariedade entre os estados africanos;

· Coordenação e intensificação da cooperação entre os estados africanos, com vista a garantir uma vida melhor para os seus povos;

· Defesa da soberania, integridade territorial e independência dos estados africanos;

· Erradicação de todas as formas de colonialismo em África;

· Promoção da cooperação internacional, respeitando a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem;

· Coordenação e harmonização das políticas dos estados membros nas esferas política, diplomática, económica, educacional, cultural, da saúde, bem-estar, ciência, técnica e defesa.

  1. Ao longo desses 48 anos, foram inúmeros os conflitos internos nos nossos estados e ocorreram até mesmo conflitos violentos envolvendo estados africanos. É isso que me leva a afirmar que a unidade e também a solidariedade entre os estados africanos nem sempre foram um facto. Eis, pois, um dado que ilustra a nossa afirmação: mais de metade dos conflitos produzidos no mundo tiveram lugar em solo africano.

  1. Dos inúmeros conflitos internos que a África registou, os da Serra Leoa, Libéria, Argélia, Angola, Ruanda, Congo, e da Somália foram, sem sombra de dúvidas, os que mais mancharam a imagem do nosso continente. Eles e outros conflitos contribuíram – e de que maneira – para o actua estado de empobrecimento e de subdesenvolvimento que nos caracteriza. Muitos desses conflitos vestiram roupagem étnica, mas outros ganharam também contornos religiosos. Na maior parte dos casos, quer a OUA, quer o seu sucedâneo, a União Africana, mostraram-se incapazes de os prevenir ou de lhes dar solução.

  1. Os conflitos entre estados africanos não foram muitos, mas foram em número e com gravidade suficientes para serem menosprezados. Recordo, por exemplo, as guerras travadas entre a Etiópia e a Eritreia, entre o Ruanda e a República Democrática do Congo, entre o Senegal e a Guiné-Bissau.

  1. Outro dos objectivos inscritos na Constituição da OUA – a cooperação entre os estados africanos – deve igualmente merecer a nossa atenção. É que, não obstante hoje existirem espaços de cooperação para os países africanos, e até mesmo com tendência para aumentarem, todavia, o seu grau de desenvolvimento, na maioria dos casos, é incipiente. Senão, vejamos:

i) O processo de integração das economias africanas efectua-se ainda no quadro sub-regional, mais concretamente nas 5 sub-regiões em que o nosso continente de subdivide;

ii) O grau de maturação desses espaços de integração sub-regional tem profundas diferenças, pois, em alguns domínios, há um claro avanço (África Ocidental e África Austral), mas, noutros domínios, os desenvolvimentos são somente uma miragem.

  1. Um dos problemas com que se debate o processo de integração das economias africanas tem a ver com a participação de alguns países em mais de um espaço de integração. Tal multiplicação de esforços confunde os processos e reduz a sua eficácia.

  1. Mesmo que, por vezes, se manifestem tendências centrífugas, a integridade territorial dos estados africanos não foi severamente molestada. Porém, a nossa história recente regista já o surgimento de novos estados fruto de rupturas internas, como foi o caso da Eritreia, que se desanexou da Etiópia, após uma longa guerra. Deu-se, ainda, a pulverização da soberania nacional na Somália, um estado que passou à condição de um leque de pequenos territórios dominados por grupos clânicos.

  1. A Líbia está a ser objecto de fortes ataques militares levados a cabo por forças da NATO e de alguns países ocidentais, sem que a nossa organização continental, a União Africana, mostre competência para ajudar o alcance de uma paz justa e duradoura.

  1. O contributo da OUA para a erradicação do colonialismo, o quarto objectivo definido em 1963, é uma das suas principais bandeiras. A pressão política exercida pela OUA e demais formas de ajuda que prestou aos movimentos de libertação tornaram-se cruciais para a libertação total dos nossos povos do colonialismo. Contudo, ainda subsiste a chaga da ocupação por Marrocos do território do Sahara Ocidental, situação que é tida por muitos como uma espécie de colonialismo intra-africano.

  1. O desrespeito pelos direitos humanos no nosso continente é uma péssima imagem que passamos ao mundo. Em África, mantêm-se irredutíveis regimes políticos que atropelam descaradamente os mais elementares direitos humanos. Somos também o espaço privilegiado para medrarem poderes autocráticos e até mesmo regimes ditatoriais. Prevalecem ditaduras mais ou menos explícitas que são, sobretudo, garantidas pelos recursos naturais abundantes que alguns estados possuem e que, foram branqueados pelos nossos parceiros ocidentais, em nome dos seus interesses egoístas.

  1. Desponta, porém, uma nova era com o alastramento das reivindicações populares por mais liberdade e por verdadeiras democracias. Os ventos que hoje sopram a partir do norte de África terão, a prazo, repercussões sobre a totalidade do nosso continente. E então estará cumprida uma parte do quinto objectivo definido na Constituição da OUA.

  1. O último grande objectivo definido no projecto constitutivo da OUA, a coordenação e harmonização de políticas, é um percurso que se vai fazendo, de um modo gradual e muito lentamente. Em algumas áreas, registam-se avanços. Mas há ainda, também, demasiadas hesitações, o que pode dificultar a nossa caminhada para nos tornarmos um continente mais unido e mais próspero.

  1. Por fim, e em homenagem ao simbolismo da data que agora se comemora, eis, em resumo, um quadro nada abonatório sobre a África que hoje temos e que compete a nós melhorar:

i) A grande maioria dos países africanos ocupa os lugares menos honrosos no que diz respeito ao bem-estar das populações. Por exemplo, são países africanos os 3 pior colocados no ranking da mortalidade infantil no mundo – Serra Leoa, Angola e Níger;

ii) As mais baixas Esperanças de Vida ao Nascer são também de países africanos – Serra Leoa (38 anos), Malawi (39), Uganda (40), Zâmbia (40), Ruanda (41), Burundi (43), Etiópia (43), Moçambique e Zimbabwe (44), Burquina Fasso (45);

iii) O mesmo quadro repete-se no que concerne à Taxa de Analfabetismo – Níger (86%), Burquina Fasso (79%), Gâmbia (67%);

iv) Existem no nosso continente inúmeras crianças-soldados, em países como: Argélia, Ruanda, Burundi, Congo Brazzaville, RDC, Serra Leoa, Sudão, Uganda. Infelizmente, Angola não escapou a este flagelo;

v) O trabalho infantil é uma gritante e revoltante realidade, sendo muito expressivo em países como o Benin, Ghana, Togo e Nigéria;

vi) Actualmente, a África regista o maior número de crianças órfãs por causa da SIDA: acima de 14 milhões. Tem também a maior percentagem de refugiados que, na sua grande maioria, são crianças.

vii) Presentemente há 14 mulheres Chefes de Estado no mundo, e somente uma delas é africana: Ellen Jonhson Sirleaf, da Libéria, desde 2005.

viii) Desde 1995, o número de mulheres parlamentares em África duplicou ou mais do que duplicou, mas ainda é na Europa Ocidental que existem mais mulheres parlamentares (acima de 30%). Um dado positivo a reter: em 2008, no Ruanda, o número de mulheres parlamentares (56%) ultrapassou o número dos homens. As mulheres também estão muito bem representadas no Parlamento da África do Sul, bem como no de Angola, onde ainda pode e deve melhorar.

ix) Contudo, no nosso continente, ainda se pratica a mutilação genital feminina, mesmo que tal prática esteja a diminuir.

x) É na África Sub-sahariana que morrem mais mulheres por causa do parto.

xi) 60% dos seropositivos em África são de sexo feminino.

xii) Não poucas vezes, as mulheres auferem salários inferiores aos dos homens pela prática dos mesmos trabalhos (70% a 80%).

  1. É esta e as próximas gerações de africanos que terão de alterar o quadro que acabei de traçar, o que só sucederá se os processos democráticos em curso forem concluídos com êxito.

  1. Sem liberdades democráticas acentuar-se-ão as clivagens étnicas, e as disputas religiosas assumirão contornos cada vez mais perigosos. A centralização dos poderes – característica essencial dos regimes autocráticos e ditatoriais – aprofundará ainda mais as nossas assimetrias regionais. E, assim, veremos permanentemente adiado o nosso sonho de competirmos em pé de igualdade com os países mais avançados do mundo.

A UNIÃO AFRICANA E OS CONFLITOS EM ÁFRICA

  1. Os desaires sofridos pelos países mais desenvolvidos na resolução dos conflitos em África, Somália (1992) e Ruanda (1994), fizeram com que se reduzisse substancialmente a participação directa de militares europeus e norte-americanos. Hoje tal participação resume-se praticamente aos casos em que há acordos bilaterais, ou a missões de carácter muito específico e com duração limitada.

  1. Em 1991, 8 dos 10 maiores contribuintes para as missões de paz da ONU eram países desenvolvidos. Para além da Ucrânia (que é um país de desenvolvimento médio), quem mais contribui com efectivos militares são países de baixo nível de desenvolvimento, incluindo 4 países africanos: Ghana, Quénia, Nigéria e África do Sul.

  1. Porém, têm-se desenvolvido Programas de Apoio à Capacitação das organizações africanas no campo de segurança e da paz. São exemplo:
  • ACRI (Africa Crisis Response Initiative), criado pelos EUA em 1995;
  • RECAMP (Renforcement de la Capacité de Maintien de la Paix), implementado pela França.
  • África Peace Facility” (2004), apoiado pela União Europeia.

  1. No quadro da luta contra o terrorismo, os EUA vão apoiando algumas acções regionais, treinando e equipamento diversos países para o controlo das suas fronteiras e detecção de movimentos suspeitos. Um exemplo é a “Iniciativa Pan-Sahel”, dirigida às forças de segurança do Mali, Níger, Chade e Mauritânia.

A PREVENÇÃO E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

  1. A União Africana (UA) elegeu a “Prevenção e a Resolução de Conflitos” como um campo privilegiado da sua acção, na perspectiva de que só se alcançará o desenvolvimento se houver estabilidade política e social.

  1. Pelo menos, teoricamente, a UA adoptou uma posição pragmática, tendo mesmo desenhado um mecanismo de “revisão pelos pares”, para a promoção da transparência ao nível das políticas públicas e da credibilidade dos regimes políticos, com o Ghana a ser o primeiro país a submeter-se ao mecanismo.

  1. Foram também criados outros instrumentos como o Parlamento Pan-Africano e o Conselho para a Paz e Segurança (CPS) da União Africana. Neste último organismo nenhum dos 15 Estados integrantes possui direito de veto. Porém, a real funcionalidade destes órgãos pode ser posta em causa por questões que têm muito a ver com a sua sustentabilidade financeira.

  1. Ao Conselho para a Paz e Segurança (CPS) da UA está incorporado um Sistema Continental de Alerta Prévio (CEWS) estritamente ligado às unidades de observação e monitorização das organizações sub-regionais, como a CEDEAO e a SADC. Compete às unidades de observação e monitorização coligir e processar os dados a nível sub-regional e transmiti-los para a sala do CEWS. O grande objectivo é simplificar e reduzir os esforços.

  1. No quadro da Mediação e Resolução de Conflitos, a intervenção africana teve lugar, por exemplo, no Burundi (com mediação sul-africana), RDC, Somália e Sudão (através do IGAD – Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento), Libéria, Serra Leoa, Costa do Marfim.

O PAPEL DA CEDEAO

  1. Presentemente, a CEDEAO é a única organização sub-regional africana com capacidade para fazer intervenção militar, dado que funciona como um sistema de defesa integrado, através do seu braço armado, o ECOMOG (Ecowas Monitoring Group). Contudo, a CEDEAO possui uma grande dependência externa em meios logísticos e financeiros. Ela já interveio na Libéria (1990-1997), Serra Leoa (1993-2000) e na Guiné-Bissau (1998-1999), com resultados que foram objecto de fortes críticas, pois de missões de paz evoluíram para campanhas militares, com a Nigéria a colocar-se a favor de uma das facções ou defendendo os seus interesses nacionais.

  1. Em 1999, CEDEAO criou o Conselho de Mediação e Segurança, como mecanismo para a resolução de conflitos na sub-região. O Conselho de Mediação e Segurança permite a intervenção militar desde que a resolução seja aprovada por uma maioria de 2/3 dos votos.

  1. A CEDEAO criou igualmente uma unidade contra a proliferação de armas ligeiras e constituiu um Fundo para a Paz (2003), com vista a financiar as intervenções militares e assim diminuir a dependência das contribuições financeiras feitas pelos países ocidentais.

  1. Ela dispõe também de centros de treinamento regionais para a formação específica de militares para as missões de paz, além das academias militares da Nigéria, Mali e Ghana (Kofi Annan International Peacemaking Training Centre - 2004), com vista a formação de uma futura força permanente. Dessa organização sub-regional, a Nigéria é ainda o único país com uma substancial capacidade militar em termos aéreos e navais.

  1. Em 2003, a Nigéria voltou a intervir militarmente na Libéria recorrendo ao destacamento militar que tinha na Serra Leoa. Desta forma, a CEDEAO contribuiu para o alcance de um acordo de paz entre o governo e os dois principais grupos rebeldes.

  1. A posição assumida pela CEDEAO no conflito da Costa do Marfim, tentando evitar o conflito militar pós-eleitoral, demonstrou a intenção de a organização jogar um papel mais pró-activo. Contudo, não foi coroada de êxito.

  1. Com vista a antecipar-se aos acontecimentos, estão em curso Centros de Alerta nalguns países da África Ocidental, coordenados pelo Centro de Observação e Monitorização sedeado em Abuja.

O PAPEL DA SADC

  1. À semelhança do Conselho de Mediação e Segurança da CEDEAO, a SADC possui o chamado Órgão de Política, Defesa e Segurança (criado em meados da década de 90), para a prevenção e resolução de conflitos. Tal órgão tem sido praticamente inoperante, devido:

i) Ao seu carácter intergovernamental, a querelas políticas entre os Estados-membros;

ii) À ausência de valores comuns (coexistem regimes autoritários e democráticos);

iii) À disparidades entre os elementos orientadores das várias políticas externas (pacifistas e militaristas);

iv) E uma fortíssima disputa pela afirmação do poder e influência regionais.

  1. No quadro da SADC, a África do Sul interveio no Lesotho, colocando-se claramente ao lado de uma das partes.

  1. Contudo, quando ocorreu o conflito na RDC, posicionaram-se dois campos: África do Sul, Tanzânia e Zâmbia optaram por uma posição mais neutral; Angola, Zimbabwe e Namíbia tornaram-se adeptos da intervenção militar. A SADC tem, pois, uma grande dificuldade em manter alguma equidistância face aos beligerantes.

  1. Em 2001, a SADC assinou um Pacto de Defesa Comum que permite a intervenção não só contra agressores externos, mas também em conflitos intra-estatais que representem uma ameaça potencial à segurança regional.

O PAPEL DA UNIÃO AFRICANA

  1. A União Africana perspectiva criar uma Força Militar própria composta pelas chamadas Brigadas Stand-by nas 5 sub-regiões africanas: África do Norte, Central, Oriental, Ocidental e Austral. Tais Brigadas ficarão sob supervisão máxima da União Africana, como foi decidido pelos líderes africanos em 2004. Porém, a intervenção unilateral de países vizinhos em alguns conflitos tem complicado o papel da UA.

  1. A “African stand-by force”, teria cerca de 15.000 efectivos distribuídos em 5 brigadas de forças militares, policiais e observadores. Tal força poderá ser mandatada por decisão do Conselho de Paz e Segurança (CPS) da UA, através de uma maioria de 2/3.

  1. A missão de paz da UA no Burundi, em 2003/2004, foi um primeiro exercício nesse sentido. Tratou-se do envio de um efectivo de cerca de 2.600 militares oriundos da Etiópia, Moçambique e África do Sul, para supervisionar o cessar-fogo e contribuir para a estabilização política do país. Teve, porém, enormes dificuldades financeiras que acabaram por minar e prejudicar a sua acção. O efectivo africano acabou por ser “absorvido” pelas forças da ONU.

  1. Ainda prevalecem conflitos em África como o do Darfur e da Somália, onde existem forças de manutenção de paz para apoio ao Governo Federal Provisório.

  1. Nos últimos dias, agudizou-se a situação no Sudão, com a disputa entre forças do Norte e do Sul. Pelo menos do ponto de vista teórico, estará em vias de solução o problema do Sudão, com a perspectiva de criação do Estado Independente do Sul do Sudão (9 de Julho de 2011). Mas, a África continuará a suportar por mais algum tempo os regimes autoritários do Zimbabwe e do Madagáscar, até mesmo o da Eritreia.

  1. Fala-se cada vez mais insistentemente na realização, neste ano, de 17 actos eleitorais no nosso continente, com destaque para o que terá lugar na RDC.

A IMPORTÂNCIA DA ONU

  1. Ainda é a ONU que continua a jogar um papel crucial nos diversos processos de paz africanos, por razões práticas, e como factor de legitimação das intervenções regionais.

  1. Muitas vezes, assiste-se a uma “absorção” das forças africanas no contingente das Nações Unidas (Em 2004, por exemplo, as forças da CEDEAO foram integradas nas forças da ONU na Costa do Marfim - ONUCI).

  1. O grande risco que correm estas acções de intervenção militar é a possibilidade de permanecerem ainda no terreno muitos dos factores que foram determinantes para o despoletar da violência. Daí que seja fundamental a implementação de mecanismos e instrumentos de prevenção dos conflitos, ainda inexistentes na maior parte das organizações regionais de África.